22 de fevereiro de 2013

Literatura de banheiro

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Quem nunca leu no banheiro não sabe o que é o prazer da leitura.

Desde pequeno leio alguma coisa quando vou besuntar a porcelana. ”Mãããe, traz uma ‘bibitinha da Mônquina’” e lá ia folhear uma revistinha inteira sem nem ao menos saber fazer um “o” com um copo. “Mãe, acabei!”, isso valia para as duas obras. Tava “tchau” para o coco e ia continuar a brincar.

Minhas lembranças e contos de infância se misturam com as do meu irmão mais velho. Porém coloco aqui como sendo todas minhas por mera conveniência estética.

Com o passar dos anos detectei um padrão para esse tipo de literatura. Uma boa literatura de banheiro é aquela que dispõe uma leitura rápida, concisa e profunda, daquelas que bate no fundo e respinga na bunda. Tal qual haicais de porta de banheiro público, um exemplar de literatura de banheiro tem que te fazer passar o tempo de alguma forma leve.

A necessidade de dormir e a necessidade de fazer necessidades se unem no prazer da leitura. Assim como o famigerado livro de cabeceira, o objeto da literatura de banheiro é aquela obra que te acompanha na sua privacidade e aos poucos vai se tornando um clássico (CALVINO, 2004).

Eis alguns dos meus clássicos:

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O Livro da Filosofia: as grandes idéias de todos os tempos

Anna Hall, Sam Atkinson, Cecile Landau, Andrew Szudek, Sarah Tomley - 352 páginas - Editora Globo.

Breve panorama da obra de grandes filósofos antigos e contemporâneos com esquemas explicando suas principais idéias e influências. Tudo isso com uma diagramação inteligente e criativa e ilustrações precisas.

Veja também: O Livro da Psicologia.

 

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As Cobras: antologia definitiva

Luis Fernando Veríssimo - 200 páginas – Objetiva.

As cobras dão pitaco sobre tudo: futebol, política e religião. Humor pastelão, consciente e filosófico de Luís Fernando Veríssimo nesse formato pouco conhecido do escritor (e cartunista).

Veja também: A cabeça é a ilha.

 

 

1021601-250x250O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr Fernandes

Millôr Fernandes - 195 páginas - L&PM POCKET.

A capa logo alerta “Documento que revolucionou todo o pensamento ocidental! Um verdadeiro orgasmo filosófico”. De aforismos a conversas no Bar do Veloso, estão editadas diversos pensamentos desse que foi um dos maiores livre-pensadores brasileiros.

Veja também: Millôr Definitivo: a bíblia do kaos.

 

 

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Dicionário de Sentenças Gregas e Latinas

Renzo Tosi - 904 páginas - Martins Fontes.

“10.000 citações da Antiguidade ao Renascimento no original e traduzidas com comentário histórico, literário e filológico”. Se você quer mais informações que essa para ter interesse no livro, você é indignus est qui illi calceos detrahat.

Veja também: Dicionário Houaiss Ilustrado: Música Popular Brasileira.

   

 

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Ostra feliz não faz pérola

Rubem Alves - 280 páginas - Planeta do Brasil.

O autor adverte que aforismos, bem como as idéias são como pássaros que pousam sem de repente no seu ombro. É preciso logo tomar nota antes que voem e nunca mais apareçam. Rubem Alves fez isso e podemos conferir belos passarinhos que ele nos pinta com seus textos.

Veja também: Educação dos Sentidos e Mais...

 

 

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17 de fevereiro de 2013

O abraçaço quando Caetano e eu nos encontramos

Para começar, é honesto que eu revele: nunca fui fã do Caetano Veloso. Nunca tinha conseguido ouvir um álbum dele do início ao fim. As músicas antigas não comunicam comigo e as que mais tive contato foram impostas a mim pela mídia - Sozinho e Você não me ensinou a te esquecer - uma foi tema de novela e outra de filme, e nenhuma é de autoria dele. Teve Leãozinho também, que por conta do cabelo já me associaram a ela…daniel-veloso

Em 2004 ele tentou o primeiro contato comigo. Eu tinha 15 anos, ouvia muito Nirvana e ele lançava um álbum com uma versão de Come as you are. Foi ousado da parte dele e nosso contato parecia promissor. Mas quando ouvi sua interpretação, foi constrangedor. Dois anos depois, Caetano lançou a sua proposta de fazer rock com o álbum . Como ele tinha feito aquilo com o rock do Nirvana, preferi não descobrir o que ele chamaria de rock. Assim perdi a pista que ele deixou para uma nova tentativa de nos encontrar. Para Caetano, o constrangimento ao se arriscar no rock não era novidade. Sua primeira experiência de reprovação foi em 1968 ao tocar É proibido proibir com Os Mutantes e ser vaiado pelo público nacionalista. Vale muito conferir isso aqui!

Para aumentar minha repulsa, incomodava ser obrigado a vê-lo em tantos documentários musicais, como se para que o artista documentado tivesse relevância, fosse necessária a confirmação pela voz doce de Caetano. Foi assim no documentário sobre Raul Seixas. Por que Raul Seixas precisa de avaliação de Caetano?! Ter opinião para tudo é seu principal defeito e isso faz dele um controverso personagem midiático. Caetano Veloso é um artista que gosta de estar conectado a tudo o que está acontecendo. Gosta de estar presente no presente. Isso é também sua grande virtude como artista, pois não é um morto-vivo a contemplar o passado como muitos dos seus pares.

por Arnaldo Branco


O tempo passa e as coisas mudam. Então, no fim de 2012 foi lançado Abraçaço, álbum que encerra a trilogia rock com a banda Cê. E este chegou ao meus ouvidos.

Caetano tem fases, e dependendo da música ou do álbum, as referências variam de ritmos brasileiros, africanos a música americana. No entanto, a bossa-nova é o elemento que permeia sua obra desde o início. Se 40 anos de carreira fazendo referência não é homenagem suficiente, o novo álbum começa explícito com a música A Bossa Nova é Foda.

A bossa-nova já é velha, mas Caetano e banda Cê são modernos e ousados. Tom Zé afirmou em seu documentário que o rock brasileiro é rock traduzido. Portanto, nada mais conservador do que ser uma banda de rock. Mas Caetano e banda Cê tocando rock não traduzem, eles experimentam e inventam. Não se confortam em agradar fãs antigos. Eles sabem que estão assumindo um risco. E essa primeira música mostra isso: reverencia João Gilberto nas entrelinhas de uma composição de melodia estranha e adorável.

A segunda música é a faixa título. É a canção que gruda. A melhor para apresentar este álbum a alguém. Foi por ela que fui fisgado quando alguém indicou na internet. Cordas, bateria e sua marcante voz tentam agradar o ouvinte do início ao fim. Embora tenha ares mais comerciais que a média do disco, possui um solo de guitarra ruidoso, inesperado para músicas de trabalho. Não precisa falar muito dela. É só ouvir e Abraçaço.

Estou triste é uma música sincera e melancólica. É a beleza da tristeza. Cantada em primeira pessoa, com a voz baixa e sofrida, poucos acordes de violão e pequenas aparições de outros instrumentos. É uma canção em que menos é mais. O artista está pelado. Feita para ouvir sozinho. Me lembra o álbum Loki, de Arnaldo Baptista, o mais triste que conheço. Este trecho resume bem o clima: ♫ Estou tão triste e o lugar mais frio do Rio é o meu quarto. ♫ É incrível como um dos sentimentos mais indesejados produza obras humanas tão belas… e ainda ameniza a dor.

Ao que tudo indica, a canção O Império da Lei certamente surgiu por influência da banda Do Amor, projeto paralelo dos músicos de Caetano cuja proposta é tocar diferentes ritmos brasileiros. Neste caso, exploraram a musicalidade paraense e garantiram uma canção dançante no álbum junto a Parabéns. Não costumo apreciar músicas que buscam ser regionalistas sem vocação, especialmente quando o artista em questão não tem nenhuma identificação com a região. Fica caricato. Mas Caetano se esforça e usa seu defeito/qualidade aqui para comunicar sobre a impunidade pelo qual a terra do calipso e tecnobrega é conhecida: ♫ O império da lei há de chegar no coração do Pará! ♪ Está no grupo das canções “menores” de Abraçaço, que para mim corresponde à metade do álbum.

Entre as músicas “maiores”, nem todas serão marcantes na vasta obra de Caetano, mas a necessidade dele se comunicar e se posicionar sobre um assunto resulta aqui em uma excelente canção que divide opiniões desde o seu título: Um Comunista.

Quase 30 anos após a ditadura brasileira, restou o cinismo e a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante. É necessário um senhor de 70 anos atento ao mundo a volta e que presta atenção no que não está à vista que resgate a essência de uma ideologia para nos alertar que as calçadas ainda estão encardidas e multidões apodrecem.

Sem desmerecer os instrumentos, mas aqui eles são como a trilha sonora de um filme. Oferecem o ritmo dramático que a narrativa pede, e durante mais de 8 minutos Caetano usa todo o poder de sua voz e poesia para através da biografia de Marighella relembrar a época em que havia esperança. E assim como Estou Triste, esta é uma música confessional:

O baiano morreu
Eu estava no exílio
E mandei um recado:
"eu que tinha morrido"
E que ele estava vivo,
Mas ninguém entendia
Vida sem utopia
Não entendo que exista

Assim fala um comunista

Embora não goste de heróis da vida real e nem de “ismos”, considero fundamental manter a esperança e vontade de mudar o mundo para melhor como razão existencial. Portanto compreendo essa música mais como uma reverência às ideias de quem guardava sonhos do que como uma mera referência a um líder político de esquerda assassinado pelos milicos. Assino a utopia.

Desde Abraçaço, fui atrás de Cê (2006), Zii e Zie (2009), A Foreign Sound (2004) e Bicho (1977), li entrevistas e assisti o documentário Coração Vagabundo. Caetano mudou. Eu mudei ao ponto de querer conhecê-lo melhor. Este texto é sobre ele e também é sobre mim. E a pista que ele deixou para mim quando lançou Cê estava na primeira frase do álbum: ♫ Você nem vai me reconhecer quando eu passar por você. ♫

Sei que ainda vou me irritar muito ouvindo opiniões dele sobre qualquer assunto, mas como artista - quando não está com Ivete ou Maria Gadú -Caetano está vivo. Para o bem ou para o mal, Caetano é foda.