23 de junho de 2010

Hardcore x sertanejo: custos de oportunidade inerentes à escolha em Araguaína

Muitos araguainenses esperavam ansiosamente por aquele sábado. A lendária e mais extravagante das duplas sertanejas, Milionário & José Rico, se apresentaria na Expoara 2010*, evento que contaria logo em seguida com a mais recente (e, pelo visto, maior) ameaça que esse monstro fonográfico chamado sertanejo universitário produziu: o meteórico-da-paixão Luan Santana

Alheios a tudo isso, estavam os poucos araguainenses que demonstram indiferença ou até mesmo aversão a essa longa semana da “Pecuária”, época do ano equivalente ao Carnaval em termos de misantropia e antissocialidade observada no andergraundi lontrino**.

DSC01548Banda araguainense Grimace, que voltou aos palcos durante a Confraternização MOSH

Enfim, não se sabe se foi uma (in)feliz coincidência por parte da TRTL Eventos a remarcação da Contrafernização MOSH , inicialmente com data marcada para o dia 1º de maio, para o dia 05 de junho, justamente no mesmo sábado e mesma faixa de horário que Milionário & José Rico na Expoara. Poderia revelar-se como um gesto de resistência, um desafio ao estabilishment araguainense ou uma grande estupidez, já que haveria uma chance potencial de que o show sertanejo roubasse do Ciriguelas um bom número de frequentadores, dentre eles os próprios organizadores do evento e este escriba, que nunca esconderam o respeito e a admiração que têm pela dupla. Afinal, tratava-se também de um evento de grande relevância no calendário cultural da cidade.

Especulações a parte, quando virei a esquina da 15 de novembro com a Vereador Falcão Coelho e não vi nenhuma movimentação na porta do Ciriguelas às 22:00, horário previsto para o início do evento, a possibilidade do cancelamento do mesmo por conta da irresistível concorrência me veio a cabeça imediatamente. Continuei andando. Passei em frente ao estabelecimento sem sequer parar para ver se tinha algum cartaz anunciando o suposto cancelamento. Ando mais alguns passos, olho para meu lado esquerdo e vejo a Praça Dom Orione repleta de camisas pretas, aguardando pela abertura dos portões.

A informação extraoficial que circulava na praça era de que a principal atração da noite, a banda gurupiense Super Noise, não iria se apresentar. Poucos minutos depois, vejo chegar à porta do Ciriguelas dois integrantes da TRTL Eventos, mas que não estavam diretamente envolvidos na organização daquele evento específico. Os dois não confirmaram nem negaram a baixa da esperada atração intermunicipal, enquanto que a banda substituta já estava passando o som dentro do restaurante.

Nesse momento, eu já imaginava os motivos do não comparecimento da Super Noise na Contrafernização. O primeiro deles seriam os 567 km que separam Araguaína de Gurupi. De imediato não me pareceu ser este o problema. A banda nunca se apresentou em Araguaína, mas alguns dos integrantes lá estiveram quando houve a apresentação da Nose Blend no mesmo Ciriguelas Restaurante. O segundo dos motivos era pura especulação: imaginei que a ausência da banda no evento seria uma represália pelas duas ocasiões em que a Territorial foi convidada a tocar em Gurupi, mas “furaram”. Bobagem minha...

Às 23:00, chegou Osmar da Mota Jr., responsável pela organização. Ele confirmou a informação da baixa, explicando que a banda não viria por conta de compromissos pessoais inadiáveis de seus integrantes, e que a banda que a substituiria seria a novata Chico Doido. Inoportuno oportuno.

As pessoas que ainda estavam na praça foram avisadas que o evento começaria em alguns minutos, e às 23:40, com quase duas horas depois do previsto (vê-se que a “tradição do atraso” também se dá por aqui né, Lidiane?), Chico Doido tocou o primeiro acorde.

A primeira apresentação da banda, que leva o nome de um conhecido carroceiro que virou vereador em Araguaína na legislatura 2005/2008, havia ocorrido há duas semanas antes, no Metal Fight II, realizado - adivinhem onde? - no Ciriguelas Restaurante. Chico Doido causou uma ótima impressão nos presentes com seu punk rock de letras simples que encaram com irreverência os araguainean issues, desde o assistencialismo eleitoreiro televisionado praticado por robustas figuras dos programas policiais (“Chambari”) até outras personagens menos ilustres, como a senhora pedinte que aborda os transeuntes em frente ao Banco do Brasil da Cônego João Lima (“Me Dá Um Real Pra Eu Comprar Um Bolo”), além de standards do punk rock brasileiro (“Papai Noel Filho da Puta”, “Pânico em SP”).

Destaque também para o figurino de Johnny (guitarra/vocal), vestido com a camiseta azul da Escola Estadual Guilherme Dourado, temporada 2007/2008. Apesar de alguns erros pontuais e perdoáveis na execução das músicas e uma certa timidez natural de quem está começando, a Chico Doido conseguiu cativar (acho que esse verbo não combina muito com uma banda punk) o público presente.

Dez longos minutos de passagem de som depois, e já era a vez da H2Y dar prosseguimento aos trabalhos. Criou-se muita expectativa (pelo menos da minha parte) em torno dessa apresentação. Afinal, esperava-se que houvesse alguma evolução trazida pelo amadurecimento natural dos seus integrantes que, desde quando eram mais jovens, na époque d’or dos Garage Rocks em Araguaína e da onda new metal trazida pela MTV, não tocavam músicas autorais e insistiam em covers de System of a Down e Raimundos.

Pois o que se constatou foi que a H2Y continua a mesma de sempre, para o bem ou para o mal. Abriram com uma música lá que eu não sei o nome, emendando com “Chop Suey”, e daí pra frente foi uma sequência enorme de Raimundos. A introdução de clássicos da banda brasiliense ficaram demoradas e totalmente descaracterizadas (por incrível que pareça) com a adição de um triângulo, como em “Eu Quero Ver o Oco” e “Esporrei na Manivela”. Tocava-se esse triângulo por mais ou menos um minuto na introdução, daí o triangulista se retirava do palco e só aí começava a música pra valer.

O público, que naquela altura tinha a sua maioria composta por cristões-novos do underground, se divertiu muito com as covers bem executadas pela H2Y. Houve as rodas de pogo mais intensas da noite, gente pedindo “Aerials”, fanfarrão invadindo palco, casal se exibindo numa “performance” no balcão do bar... O público em geral ficou satisfeito, mas o pessoal das bandas, não. O descontentamento era patente no semblante de alguns. Na descrição da comunidade da H2Y no Orkut eles citam uma frase atribuída a Bob Marley que diz: “Não tocamo (sic) pra agradar os críticos. Tocamos o que queremos, quando queremos e quanto quisermos”. Então tá, beleza...

Logo em seguida foi a vez da Prozac. Essa já era a quarta vez que a banda tocava em 2010 e está confirmada para pelo menos em mais quatro apresentações nesse ano, dentre as quais estão o Festival de Rock da Lua Grande, em Conceição do Araguaia, e o 7º PMW Rock Festival. A banda surpreendeu quando abriu o show com a célebre introdução de “Eye of The Tiger”, da trilha de Rocky III. Presente no imaginário coletivo, as pessoas imediatamente responderam com a simulação de uma luta de boxe com quem estava do lado.

Não se chegou sequer na parte cantada da música, e Diego “Babidi” Silva (baixo) chamou o ex-vocalista Marco “DF” Lima (ex-A Baba de Mumm-Rá) para cantar “Capeta Hardcore”. O repertório apresentou uma sensível mudança em relação às apresentações anteriores: fora a intro de “Eye of the Tiger”, não haviam covers (não que eu lembre), e das autorais executadas haviam muitas que não entraram na demo Caos e Comédia.

Os três se mostraram estarem bem à vontade no Ciriguelas. As falas antes das músicas estão mais descontraídas, o baterista Erik “Preguiça” Veiga subiu no banco e pediu para que a galera agitasse mais. Coisa que, aliás, não aconteceu. Metade do público se deu por satisfeito com as covers da H2Y e se retirou. Entre a banda e o pessoal que ficou, havia um vão onde somente os que estavam com mais disposição batiam cabeça.

Os vocais eram divididos entre Babidi e Ruy “Chapolin” de Araújo (guitarra), que cantaram músicas consagradas do repertório da banda, como “Idiota”, “Odeio”, “Loira do Banheiro”, as cabarezísticas “Maria Cotó” e “Rua do Amor”, além de “Deixa de Frescura, Isso é Rock ‘n Roll”, que ficaria muito melhor se tivesse um vocal mais limpo e inteligível. Uma coisa não mudou: a banda encerrou a apresentação com o tradicional esporro de “Punheta do Cão”.

O último show era o mais esperado pelos die-harders e por aqueles que conhecem a história do punk rock/hardcore araguainense. O Grimace retornou aos palcos anos após o suicídio do seu vocalista original, Magno da Hora. O retorno fora anunciado no começo do ano, mas com nome e formação diferente. A Conspiração Lapichó tinha na formação Gilberto Costa (Herdeiros do Rock, Grimace) nos vocais, André “Cachorrão” dos Santos (Grimace, A Baba de Mumm-Rá) na guitarra, Gustavo “Sarará” Mesquita (Mucosa Anal) no baixo e Sandro Falcão (Psicose, Safari Joe) na bateria. Sarará e Sandro saíram da banda, e para seus lugares foram chamados DF no baixo e Bebel na bateria. Como todos os integrantes já haviam tocado no Grimace nos anos 90/00, fizeram por bem reativar a banda, após pedir o aval aos familiares do falecido vocalista para a utilização do nome, bem como da faixa com o nome da banda que estava em seu poder da família.

A expectativa criada em torno desse momento histórico do nosso underground tocantinense quase vira decepção. As primeiras duas músicas, entre elas o clássico “Bomba Nuclear”, mostraram uma banda nervosa com a reestréia e um vocalista com movimentação tão intensa e imprevisível que beirava a irresponsabilidade. Gilberto era visto cantando em todos os cantos do Ciriguelas, menos no palco, que naquela noite não tinha a grade de contenção. Criou-se uma situação insólita, pois foi perdida a referência do palco, e quando se olhava para trás na procura pelo vocalista, podia ser facilmente surpreendido por uma trombada suada e indesejável.

Passado o nervosismo, mesmo com o microfone do Gilberto falhando a todo momento, a banda engatou uma quinta e tocou um clássico atrás do outro. O público batia cabeça, pulava, dançava e cantava junto músicas como “Cavanhaque”, “Alienação”, “Século XX”, com direito a covers do Psicose. Os presentes pediram bis, e a banda tocou “I Don’t Care”, “Pânico em SP” e uma embromated version de “Anarchy in the UK”.

As caixas se calaram e a luz foi acesa. Com a respiração ofegante, a camiseta encharcada de suor e um sorrisão estampado na cara, saí do Ciriguelas sem o sentimento de culpa por ter perdido o show de Milionário & José Rico, imaginando estar incorrendo num custo de oportunidade enorme. No entanto, na volta pra casa, paro numa conveniência para comprar uma lata de cerveja. Pergunto para um senhor que vinha do Parque de Exposições e comprava cigarros por ali como tinha sido o show da dupla sertaneja. Ele se queixou do pouco tempo de show (cerca de uma hora), sendo que eles “mais conversaram do que cantaram”, opinião essa que era uma constante entre os comentários que ouvi posteriormente.

Deitei-me na cama esgotado, porém satisfeito, sem peso nenhum na consciência. Custo de oportunidade? Eu teria se tivesse deixado de ir a Contrafernização para me deslocar ao Parque de Exposições, pagar um ingresso caro, para constatar depois que eu tinha me metido numa grande “Cilada”, título de uma música de João Mineiro & José Rico... ou seria Milionário & Marciano? Mas afinal, que dupla foi que tocou na Pecuária, mesmo?

Foto por Diego “Babidi” Silva

Escrito de Araguaína pelo bancário e estudante Thassio Fontes
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* Sim, o Sindicato Rural de Araguaína não usa mais algarismos romanos para enumerar as edições do evento. Das duas, uma: ou perderam as contas de quantas exposições ocorreram nesses 42 anos ou estão em dúvida de como se deve escrever em algarismos romanos do número 40 pra frente. Fica a dica: XL, e não XXXX.
** Lontrino vem de Lontra, antigo nome de Araguaína, do tempo que era apenas um distrito de Filadélfia.

9 comentários:

Tácio Pimenta disse...

ufa... certeza que vc é "irmão literário" do Bauducco!
massa o texto, massa saber que ainda rola uma cena aí em Lontra (massa saber a história de Lontra. E de Filadélfia, é claro).

valeu, chará

@_caacaauu disse...

Muito legal! Isso é mto importante pra manter a cena viva. Tenho certeza que existem mtos que num momento como o do Thássio, no qual passava próximo ao local do evento e não viu nenhuma movimentação, teria dado meia volta e ido embora, talvez até pra pecuária. Muito bom o texto, e muito boa a atitude de todos que participaram do evento. UM SALVE!

Lidiane disse...

Com textos assim, o Matar-te cumpre o seu papel na literatura. Não pela bela escrita apenas, mas pelo fato do evento ter acontecido a cerca de um mês, no entanto, não envelheceu com o tempo, e continuará interessante de se ler daqui dois, três anos....

Marcelo disse...

Opa, o amigo e bancário Headbanger Fontes se revela um talento colunista/literário tbm, o repórter gonzo (ou gozo) de Araguaína. Muito bom texto e importante para registrar um momento underground nos anais da história do rock local.

Marcelo disse...

Opa, o amigo e bancário Headbanger Fontes se revela um talento colunista/literário tbm, o repórter gonzo (ou gozo) de Araguaína. Muito bom texto e importante para registrar um momento underground nos anais da história do rock local.

Unknown disse...

Felicitações ao Grande Articulista Thássio "Kiss" Fontes
Fontes eu não fui à confraternização, mas voce relatou aos coisas de uma forma tal, que é como se lá eu estivesse ido!!!
Cumpriu a função com louvor!!!!!
Como diria Thiago " Garfield" Marcondes
JORNALISMO DE VERDADE, COM RESPONSABILIDADE!!!!!!!!!!!!!!!!

Fontes disse...

Fico feliz pela boa receptividade do texto junto aos leitores do blog. É a primeira vez que escrevo um texto desse tipo, e confesso que ainda estou insatisfeito com o resultado final.

As fotos do evento estão em http://viewmorepics.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewPicture&friendID=529145625&albumId=771815&page=2

Valeu, pessoal!

Fefê Alves disse...

Saí de Araguaína há oito anos.
E mesmo tendo tentado a vida na música, coisa que acredito piamente, ser rito de passagem de qualquer um que cresça no Tocantins, quisera eu ter resenhistas como você, meu caro Thassio.
Coisa boa de se ler.
E o Grimace é como Highlander. Tive uma demotape que resenhei (com muito menos propriedade, diga-se) em minha época de fanzine fotocopiado. DF tocando também é outra coisa nostálgica de se ver.
Forte abraço.

Anônimo disse...

Muito bom poder ler isso 10 anos depois, eu estava nesse evento, foi o primeiro que eu fui na vida, mundo novo, mas achei o máximo