17 de maio de 2010

Domingo no Paraíso

Com uma semana de antecedência descobri na UFT-Palmas através de um panfleto (de má qualidade por sinal) que teria show gratuito do Oficina G3 no domingo seguinte (01/05) em Paraíso do Tocantins, cidade a cerca de 60 km da capital.

Quando quero uma coisa sou rápido na hora de listar motivos a mim mesmo para persistir e conseguir. O principal deles é que embora Palmas não seja lá muito merecedora do status de capital, ambiente de interior a cidade também não tem, e eu sinto falta de me relacionar com pessoas que tenham aquela prosa mais descompromissada, menos pautada pela grande mídia. Ver um lugar onde as crianças brincam nas ruas também, não só nos computadores. Um lugar onde ir a sorveteria é um programa realmente especial.

Outro motivo era ver pela primeira vez um show do Oficina G3, que eu nunca tinha dado atenção por conta do preconceito com o rock cristão, até começar a trabalhar na agência em que estou atualmente, e meu amigo Ivan Paes obrigar a todos do departamento de criação a ouvir qualquer ritmo com sobrenome gospel. Meu instinto de sobrevivência fez com que eu desenvolvesse senso crítico para isso também, e tive de atestar a qualidade do álbum “Depois da Guerra”, lançado pelo Oficina em 2008. Som pesado que remete ao thrash metal do Metallica mesmo com vocais limpos. Chama muita atenção o baterista, e o super guitarrista Juninho Afram, considerado um dos melhores do Brasil independente do estilo. Se todos esses motivos não fossem suficientes, só o fato de fugir do desagradável calor palmense era argumento de sobra, né? Afinal lá é serra.

Empolgação garantida para que eu não desistisse da idéia, faltava contagiar outras pessoas que eu gostaria de levar comigo. Convidei a Paula (razão de viver) e os parceiros de blog para essa aventura em Paraíso do Tocantins. Além destes, divulguei o show na comunidade do Tendencies Rock para que outros não perdessem o evento por falta de informação, e intimei o abençoado Ivan Paes. A semana correu, e na hora de ir mesmo, só minha eterna companheira foi junto. Após uma hora de ônibus por apenas 8 reais, chegamos na rodoviária às 16h30, e com duas opções de estadia: a casa da família da Paula, ou a casa do amigo, parceiro de rock e faculdade Fernando - The Big Dog!

Da rodoviária já aproveitei uma das grandes vantagens de se estar numa cidade do interior: ir a pé a qualquer canto. A primeira parada foi na visita aos parentes da Paula. Algum tempo depois sentimos que a gente estava em um clima fora de sintonia com o ambiente da casa e o ritmo das pessoas. Liguei pro Fernando, que estava no meio do ensaio com sua banda, Poetas do Caos, e nos chamou para chegar ao Museu Cora Coralina, que funciona como o Centro de Criatividade do Espaço Cultural de Palmas. Em tempo, vimos as três últimas músicas do ensaio, e descobrimos os pequenos erros que durante os shows passam despercebidos, mas que causam repetições no ensaio.

Com eles, a gente tava em casa. Em Palmas seriam Fernando, Cláudio, Alexandre e Ênio. Na tradição de quem cresce junto em cidade do interior, são reconhecidos por outros nomes de batismos secundários: Cachorrão, Macagi (sobrenome que virou nome), Gago e Formiga. A galera que trabalha pela cultura de Paraíso, remunerados ou não, através do ponto de cultura Oficina Geral.

Nesse período da tarde já estava na fissura por GLICOSE (que merda de escritor pseudo-beatnik que eu sou? Qualquer um teria feito questão de colocar em negrito e caixa alta que estava na fissura por qualquer substância um pouquinho menos saudável). Como não podia deixar de ser, o pessoal levou a gente pra dar uma passadinha na lanchonete/sorveteria do Paulinho. Enquanto na tv o Santo André pressionava o Santos por 3x2 na final do Paulistão, a Paula e eu curtíamos os deliciosos milk shakes de chocolate e baunilha, respectivamente, por R$ 2,50 cada.

Satisfeitos, o Macagi nos convidou para visitar a casa em que mora com sua mãe, localizada no pé da serra. O Fernando disse que era “um pouco perto” dali e que poderíamos ir a pé, mas dotado de mais experiência e bom senso, Macagi chamou um táxi que nos deixou na porta da casa dele por apenas R$ 6, sem taxímetro. Se era mesmo “pouco perto”, nem discuto, mas fato é que no fim do trajeto tinha uma desafiadora ladeira muito íngreme e cumprida. Estrelinha na testa do Macagi!

Éramos cinco nesse momento: Paula e eu, Macagi e a namorada Vanessa, e o Fernando. Na esquina, uma placa artesanal indica a sede da Oficina Geral, que funciona na casa do Macagi e oferece lan-house, biblioteca e oficinas de música, artesanato e poesia. A casa do cara é fantástica! Realmente fica no pé da serra, rua sem asfalto, poucas casas próximas e mata nativa por todos os lados e todo tipo de pássaro nas árvores. O quintal fica na parte da frente da casa, e só é cimentado o caminho a ser percorrido que parece um circuito com pequenos ambientes onde podem ser feitas rodas de conversa e/ou violão, ou até mesmo para momentos mais introspectivos onde a gente se imagina lendo e refletindo sobre qualquer coisa com uma paz absurdamente desconectada do mundo que se explode lá fora.

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Todos os bancos espalhados por esses ambientes são feitos artesanalmente pelo próprio Cláudio. (Agora que eu conheço a casa do cara, já tenho intimidade para chamar pelo próprio nome). O que mais chama a atenção é uma casinha também feita pelo Cláudio com madeira doada pelo Naturatins. Semelhante ao sonho de todo garoto - uma casa na árvore - serve como refúgio, e por dentro é cheio de livros, quadrinhos, discos, cds, fitas k7, uma máquina de escrever e até um livro de matemática com o menino Ferrugem na capa. A Paula perguntou se as pessoas podem pegar os livros emprestados como nas bibliotecas. O Cláudio respondeu que sim mediante um cadastro, mas que a maioria das pessoas vai para ler por lá mesmo.

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Claro, com um ambiente aconchegante daquele! Sem contar que por fora ainda tem uma escada que dá acesso ao teto da casinha como se fosse um terraço. É ver para crer!

Imagem0174O cara vive quase no meio do mato e não tem animais? Tem sim. O único cachorro é o Amarelo, que veio já adulto para a casa do Cláudio, e diz através do couro cheio de cicatrizes o quanto de apuros já teve de passar nesse mundo cão. Há pelo menos uns cinco gatos oficiais da casa, sendo dois adultos e três filhotes da Tsu, abreviação de Tsunami, que foi justificado após a gata nos acompanhar em todo o trajeto na subida da escadaria da serra que dá acesso a uma capela. Lá em cima, o Cláudio me contava com empolgação quais eram seus planos para aquele lugar, enquanto eu lamentava internamente que os cargos de gestão pública, pelo menos no Tocantins (prefiro imaginar que em outros lugares não é assim), não são ocupados por quem tem as melhores idéias e intenções para pôr em prática.

Papo vai, papo vem, anoiteceu e a fome começou a coçar a barriga quando o Cláudio nos ofereceu um jantar. Ficamos na dúvida porque tínhamos combinado de dormir na casa do Fernando, e eu não sabia se a mãe dele tinha se preparado para nos receber, se iríamos causar algum incômodo, sei lá... e o Fernando dizia sem nenhuma segurança que achava que a mãe dele tinha preparado algo para nós. Na dúvida, a gente preferiu recusar o convite do Cláudio e poupá-lo de cozinhar para nós, e pegamos um táxi para conhecer a casa e a família do Fernando.

De volta ao centro de Paraíso, após dois anos e meio estudando com o cara, finalmente conheci a família dele. Não vou lembrar todos os nomes agora, até porque sempre chamarei de pai do Fernando, mãe do Fernando, irmã do Fernando, e as crianças sobrinha do Fernando (Maria Clara eu lembrei!) e o sobrinho do Fernando. No fundo da casa, um quintal enorme com animais assim como na casa do Cláudio: galinhas, gatos e patos. E o melhor de tudo: uma mesa linda com comida caseira caprichada. Caseira aqui está empregada no sentido de temperos de sabores fortes. Feijão com coentro, purê de batatas com gostinho de manteiga, carne assada no forno com sal no ponto que eu gosto, além de tomate picadinho com repolho e abacaxi e melancia de acompanhamento final. Comi até ficar com aquela tristeza de satisfação. Ahhh vontade de voltar no tempo e aproveitar mais. E pensar que o Fernando quase fez a gente dispensar o que a mãe dele tinha preparado para gente.

Após a refeição, enquanto via o Fernando revivendo seu passado de basqueteiro brincando com a sobrinha de quatro ou cinco anos, praticamente exigi que a mãe dele cumprisse o papel de mãe e nos mostrasse aquele álbum dele de fotos na infância com cabelo jogadinho pro lado ou para trás, camisa por dentro do shorte e a bochecha chamando mais atenção que tudo. Que graça teria se eu conhecesse a mãe dele e não visse aqueles olhos brilhando de recordações que vinham de antes mesmo do menino pegar a fama de cachorrão na escola? Aliás, apesar da minha insistência, ainda não há explicações sobre o apelido. Suspeito que tenha origem semelhante a Bauducco.

Tomamos banho, assistimos ao Pânico na TV pela tv à cabo, programa que eu não via há muito tempo. No quarto dele, muitos pôsteres de seus ídolos na guitarra estavam ali na parede, certamente para inspirar seus melhores sonhos.

Ah, ainda tinha o show do Oficina G3, o tal motivo para que eu estivesse na cidade. O ex-companheiro do Fernando no programa de rádio Confraria do Rock, Erivélton, passou lá para nos acompanhar até o local do show, no caminho nos somamos a namorada do cachorrão, Darlene.

Chegando à Praça da Saudade, que tem esse nome porque fica de frente ao cemitério, já acontecia o show playback do cantor gospel Mattos Nascimento em uma estrutura de palco bacana. Eu só tinha a informação pelo Cláudio, de que o cara tinha participado do Paralamas do Sucesso na época do disco “Selvagem”, e que atualmente era um vendedor de cds. A princípio desconfiei do que ele quis dizer com o termo, até o momento em que durante o show vi o pilantra dizer exatamente com estas palavras: “Pessoal, para quem gosta destas músicas que trazem a palavra do Senhor, tem uma banquinha aí no meio com os meus cds sendo vendidos. Compre o cd original. Quem compra cd pirata, Jesus não abençoa. Eu já estive sem condições de comprar cd original, e sabe o que eu fiz? Orei e pedi a Deus que me desse condições de comprar cd original.”

A pilantragem não parou por aí. O show foi bancado pelo Ministério do Turismo, ou seja, dinheiro do contribuinte. No entanto não pertencia a nenhum evento específico e nem comemorava data sequer. Ninguém sabia direito o porque estava acontecendo aquele show. Mas era só observar as faixas espalhadas pelo local com os dizeres: “o Deputado Vicentinho apóia a música”. Ah sim, era um showmício. Tudo bem Mattos Nascimento, a gente entende você improvisar uma rima com Vicentinho nas suas músicas sopradas pelo Espírito Santo (não o geográfico, o religioso). Esse tem carreira artística promissora em todo o interior do país.

Na outra ponta da praça, o bar estava movimentado também, e foi lá que confraternizamos com os outros Poetas do Caos até dar a hora do Oficina G3 e o som das guitarras pesadas espantar mais da metade do público presente. Começaram o show direto pela música “Meus Próprios Meios”, que é a música que mais me empolga deles. Todo o show seguiu essa linha pesada, exceto no momento em que eles tocaram a radiofônica “Te Escolhi”. A banda causou excelente impressão sobre a qualidade profissional deles tanto musicalmente quanto aos momentos pensados que ocorrem durante o show. Até mesmo a pregação do Juninho Afram, que era um momento temido por mim, surpreendeu pela honestidade do discurso, sem forçar a barra. Eles são cientes que apesar de serem uma banda cristã, o show não é voltado só para esse tipo de público. Não fui convertido, mas em nenhum momento me senti incomodado como quando ouço discursos hipócritas. Grande banda!

Voltamos para dormir na casa do Fernando, e no dia seguinte viver mais uma aventura: acordar cedo para ir até a saída da cidade e conseguir carona para nós três até a UFT/Palmas e chegar a tempo na aula de volta a rotina. No meio disso, uma situação curiosa: vários Uno passavam por nós e nos ignoravam carona. Até uma veterana do curso de jornalismo nos ignorou. Outro veterano que também veio pegar carona uns dez metros antes da gente conseguiu em menos de um minuto que chegara ao ponto, enquanto já estávamos há quase 30 minutos esperando. Quando tudo parecia piorar, um carro executivo tipo um Tucson ou algo semelhante apareceu, e eu comentei: “só de raiva a gente vai conseguir carona nesse carro aí!” Deu certo! Esticados em bancos de couro no ar-condicionado a 140 km/h, nem sentíamos nada além de sono enquanto nosso caronista ultrapassava todas as caronas dispensadas e nem fazia questão de puxar qualquer assunto com nenhum de nós.

Fotos por Paula Serreal

10 comentários:

Poetas do Caos disse...

Espero receber mais visitas como a sua aqui na Oficina! Estão todos convidados! Viu como o Mattos é um ótimo vendedor de cds? kkkkkkk ! Parabéns pelo texto!

Ciro Gonçalves disse...

Só li os 3 primeiros parágrafos, seu preconceituoso. Depois eu leio o resto.

HG disse...

Eu fui de última hora ao show, não tão empolgado, afinal, não ouvia Oficina desde a saída do PG - antigo vocalista. Mas o Mauro, preciso adimitir, me surpreendeu. Aliás, toda a estrutura montada estava de parabéns.

Melhor ainda foi ler seu texto. Nem acredito pra falar a verdade. Dificilmente, depois de uma mente formada, alguém se abre a experimentar as novidade ao ponto de abrir mão dos seus preconceitos e mais ainda, opinar de forma condizente com os fatos, não firmado no "achismo".

Matar-te ganhou meu coração!
:D

PatiStröher disse...

Eu só resolvi comentar deivo à insistência do perfil do Matarte no Twitter. ok?!?! Mas, que fique bem claro, eu sempre leio o Blog e acho o máximo... só não sou de dar muito pitaco por aqui.
Gostei do texto, mesmo não curtindo a banda. Só fiquei com raiva porque o meu final de semana foi obrigatóriamente entre quatro paredes e na frente de um computador. Hahahaha
Enfim, parabéns pelo texto. ;)

96 ROCK disse...

Obrigado por nos avisar desse show Bauducco. Eu fui graças ao aviso na comunidade do Tendencies. E melhor ainda por eles(Oficina G3)terem tocado todo o disco(Depois da Guerra),com exceçao de 2 musicas. Ainda encontrei o nobre acadêmico la no show,hehehe. Só faltou ver o Fernandão(Poetas do Caos)

Tácio Pimenta disse...

Eu tinha um cd do Oficina, há um tempo atrás, e curiosamente o intercalava com algum do Metallica na hora de sentar em frente ao microsystem e tentar tirar algum riff de ouvido... massa, instruMETAL dos bons.
Mas o que me interessou mesmo foi a tal casa do Cláudio, pela sua narrativa (ou pela minha imaginação...) pareceu ser surreal.

p.s.: sempre fui da idéia que pobre dá carona mais facilmente que os ricos medrosos, mas tbm já fui surpreendido por um utilitário confortável e solidário qdo não havia mais esperanças...

Macagi disse...

Aproveitando para convidar os leitores e a turma do matar-te para o primeiro "Sarau na Oficina" e inauguração do Oficina Bistrô, neste sábado dia 22 a partir das 20h. Aqui na sede da oficina Geral em Paraíso, local onde recebi a visita do amigo Bauducco. Vai ter um violão e umas caixas de som pra galera interagir, exposição de artes e recital de poesias. Tudo simples e natural, como vocês puderam conferir no post. Ah! Ainda vai ter macarronada free até as 22h. rs

Malu Motta disse...

Já tinha lido bons textos seus, Señor Daniel, mas a qualidade deste está indiscutível. Li este com todo o gosto! Acho até que este pertence ao Jornalismo Literário, de tão interessante e bem escrito.

Esmalte Descascado disse...

ôoo coisa linda de Deus é ler um texto grande, com os olhos ardendo de sono e se sentir confortável e curioso a cada parágrafo.

:)

enio disse...

muito bom cara, gostei pra caralho do texto, so lembrei de ler agora, antes tarde do que numca um abraço.